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terça-feira, 26 de dezembro de 2017

As Forças Armadas, a Cidadania e a Opinião Pública

Instituto de Defesa Nacional
Seminário:
Segurança, Defesa e Profissionalização das Forças Armadas Portuguesas.
Lisboa, 4, 5 e 6 de Março de 1998
6/03/1998 - 10 h 00 m - As Forças Armadas, a Cidadania e a Opinião Pública
Presidente da Mesa: Professor Doutor Adriano Moreira.
Comunicação de Raimundo Narciso. 
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Exmº Sr Director do IDN
Exmº Sr. Professor Adriano Moreira.
Exmª Senhoras e senhores convidados.
Começo por manifestar a honra que é para mim intervir num seminário organizado pelo Instituto de Defesa Nacional e agradecer ao seu director, o senhor Professor Doutor Nuno Severiano Teixeira, o convite para nele participar.
Gostaria ainda de sublinhar a importância desta iniciativa do senhor Ministro da Defesa Nacional, Professor Doutor Veiga Simão, para promover na sociedade o debate sobre a profissionalização das Forças Armadas e dar os parabéns ao senhor brigadeiro Fonseca Rodrigues pelo elevadíssimo nível da sua participação no Livro Branco e neste seminário. 
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A perspectiva da suspensão do serviço militar obrigatório, com a correspondente passagem das Forças Armadas Portuguesas, baseadas na conscrição, para umas Forças Armadas profissionalizadas, assentes no voluntariado, tem sido encarada com preocupação e mesmo, nalguns casos, com perplexidade.
Sem dúvida que uma mudança tão transcendente para as Forças Armadas e para a Defesa Nacional não poderia deixar de suscitar interrogações e a máxima atenção dos militares, dos políticos, dos especialistas e dos cidadãos em geral.
A dúvida sobre o acerto de tal política além de legítima é salutar e naturalmente este seminário, está sem dúvida a contribuir para uma consciência mais profunda das eventuais consequências e desafios da profissionalização das Forças Armadas.
As causas que estão a determinar a preferência pela profissionalização das Forças Armadas decorrem de um novo ambiente político e estratégico na Europa e no mundo, de novas missões para as Forças Armadas, de novas tecnologias e novas maneiras de fazer a guerra.
A arma nuclear, os mísseis inteligentes, os satélites que permitem visionar todo globo terrestre e a panóplia de novas e sofisticadíssimas armas que desde a 2ª guerra mundial têm surgido não podiam deixar de ter consequências determinantes na forma de conduzir a guerra e consequências inevitáveis para a natureza do serviço militar.
As "guerras das nações", como as classifica Michael Howard,(1) que caracterizaram o último quartel do século XIX e a primeira metade do actual e que têm o seu paradigma nas batalhas, não com milhares, como até essa altura, mas com milhões de homens, como na Grande Guerra de 1914/18 e na 2ª Guerra Mundial, estavam condenadas a prazo pelo desenvolvimento tecnológico, como sucedeu ao longo da história com os diferentes tipos de guerra.
Nestas guerras massivas a vitória era determinada fundamentalmente pelo número de soldados que cada potência podia conduzir aos campos de batalha. O serviço militar obrigatório, extensivo a toda a população do Estado, como um elemento estruturante da cidadania, foi um conceito ideológico elaborado pelos filósofos do século XVIII. No entanto só se viria a impor na prática, apesar da resistência das populações, por uma necessidade imperiosa da guerra e não para materializar um dever ou um direito de cidadania.
Simplificando a realidade para enfatizar a importância de um factor tecnológico na forma de fazer a guerra e mudar o tipo de serviço militar diria que, mais do que as exigências da cidadania, foi o comboio o responsável principal, não pelo surgimento do conceito mas pela implantação prática da conscrição.
O aparecimento do comboio permitiu conduzir à frente de batalha vagas ininterruptas de víveres, armas, munições e homens. Com a excepção das guerras revolucionárias e das guerras napoleónicas, as antigas "guerras dos profissionais", do século XVIII e parte do século XIX, que por razões logísticas não tinham por vantajosos os exércitos com mais de 60 ou 80 mil homens, deram lugar a guerras que envolviam milhões de combatentes e exigiam a mobilização de todo o potencial humano das nações.

Que ligação há entre serviço militar obrigatório e cidadania?
Tem aquele a ver apenas com as novas necessidades da guerra? E toda a retórica em torno do seu papel estruturante da cidadania, da consolidação das nações, de mediador da "nação em armas", não passará afinal de "acção psicológica" para convencer uma população que se mostra refractária a marchar para o matadouro da guerra?
Ou, noutra perspectiva, tingindo o serviço militar obrigatório de cores republicanas, democráticas ou de esquerda, fará qualquer sentido agarrarmo-nos a ele com o receio de um imaginário regresso aos impopulares exércitos profissionais do século XIX? Exércitos profissionais como o francês pós-Napoleão, o inglês, o prussiano, o austríaco ou o russo, que nos meados do século passado "se mantiveram ocupadíssimos a reprimir motins e revoluções dentro das fronteiras dos respectivos Estados em vez de lutarem ou se prepararem para lutar uns contra os outros"?(2) 
 
A França - "pátria da conscrição"
Antes de analisar o processo de implantação da conscrição em Portugal para daí retirar conclusões para a sua ligação com a cidadania parece-me importante observar o serviço militar obrigatório, no seu devir histórico, na "pátria da conscrição", a França.
Apoiar-me-ei, entre outros, no historiador francês Raoul Girardet(3) especialista de história militar. Foi ele um dos especialistas que o Parlamento francês ouviu, em 1996, quando, como nós hoje aqui, procurava estudar com a seriedade que o assunto impõe, as consequências da profissionalização das Forças Armadas.
O conceito moderno de serviço militar obrigatório, extensivo a todos os cidadãos do sexo masculino, ou universal, começa a formar-se com os enciclopedistas, os filósofos franceses do século XVIII.
O conceito de serviço militar obrigatório, em conexão estreita com o conceito de cidadão surge de forma clara e expressiva no artigo "Armées" da Enciclopédia, a obra maior de Diderot, elaborada entre 1746 e 1776, quando o filósofo diz que "il faudrait que, dans chaque condition, le citoyen eût deux habits, l´habit de son etát et l'habit militaire".
Montesquieu dá do serviço militar obrigatório a mesma noção e também Jean-Jacques Rousseau, no seu ensaio sobre "O Governo da Polónia", retoma esta mesma ligação estreita entre conscrição e cidadania. Para ela contribuem também, militares e homens de letras. Nesta época o serviço militar obrigatório é também defendido e divulgado por Maurice de Saxe em "Rêveries", por Servan, numa publicação de 1780, denominada "Le soldat citoyen" ou pelo marechal de Belle-Isle.
Mais pelo pioneirismo na elaboração do conceito do que pela sua consagração na prática, a França tornou-se uma referência obrigatória quando se fala de serviço militar obrigatório.
Girardet garante que apesar de toda a retórica que atribui à Revolução Francesa a instauração da conscrição, isso não corresponde à realidade histórica.
Na realidade nos primeiros passos da revolução francesa o deputado à Assembleia Constituinte Dubois- Crancé, em Dezembro de 1789, procura em vão aprovar o serviço militar obrigatório explicando que "em França todo o cidadão deve ser soldado e todo o soldado cidadão". Mas a ideia teve apenas o apoio muito restrito de uma minoria de deputados e foi rejeitada em nome, quem diria!... da liberdade.
Com a Revolução Francesa nasce isso sim, na sua fase inicial e moderada a Guarda Nacional que fornecerá ao Exército forças constituídas por civis armados. Mas que civis? Apenas os que provassem ter um nível de riqueza acima de certo limiar, os chamados cidadãos activos, os únicos que tinham ganho o direito de voto, no sistema eleitoral censitário aprovado pela Constituinte.
Esta, que apenas três meses antes aprovara a progressista Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, já recuava assustada com a entrada das classes mais desfavorecidas no movimento revolucionário e aprovava uma lei eleitoral de que excluía os franceses mais pobres. O sufrágio universal teria de esperar pelo levantamento popular de Paris, em 10 de Agosto de 1792, que acabaria por levar ao poder os jacobinos Robespierre e Marat.
Outra referência incontornável quando se estuda o processo de enraizamento do serviço militar obrigatório em França, é a batalha de Valmy que representa a primeira grande vitória da Revolução face aos exércitos invasores da Áustria imperial e da Prússia monárquica já com o caminho aberto para Paris.
Mas é necessário precisar que a vitória de Valmy não se deve ao serviço militar obrigatório. Ele não existia então a não ser que queiramos indevidamente dar esse nome às sucessivas mobilizações do povo revolucionário, principalmente em Paris, para salvar a revolução. A vitória de Valmy é conseguida ainda com o exército real do antigo regime mas reforçado, e talvez decisivamente, por uma mobilização geral de todos os homens válidos de Paris. Apesar da sua duvidosa preparação, são os 60 mil civis armados chegados da capital que dão um novo moral às tropas e decidem do desfecho da batalha.
"levée en masse", a mobilização geral do povo francês para a guerra, decretada em 23 de Agosto de 1793, pela Convenção, outra referência que se pretende comprobatória do serviço militar obrigatório, é apenas uma medida que tem os limites temporais e os contornos da defesa da revolução. Não é ainda, muito longe disso, a institucionalização do serviço militar obrigatório.
O artigo 1º do decreto de mobilização dizia: "Desde este momento, até à expulsão dos inimigos do território francês todos os Franceses estão permanentemente requisitados."
São então requisitados para as fileiras todos os jovens dos 18 aos 23 anos.
Com a requisição em massa, no início de 1794, a jovem República conseguiu pôr em linha 600 mil combatentes que lhe permitiu enfrentar a Europa monárquica coligada.
A Revolução Francesa vai consagrar, isso sim, com a Lei Jourdan, de 5 de Setembro de 1798, uma forma que representa uma aproximação do serviço militar obrigatório universal, o sistema de sorteio. Consagra-se o princípio da conscrição e submetem-se ao serviço militar os jovens dos 20 aos 25 anos. São incorporados por sorteio os que forem necessários ao Exército. Mais tarde o sistema é adulterado e entra-se num período histórico, que vai até 1872 em que, quem tiver dinheiro compra um infeliz que o substitua.
Na realidade o sistema livrava do serviço militar os filhos de todos os que estivessem acima do remediado. Os desfavorecidos da sorte que não conseguiam escapar ao serviço militar, estavam além disso proibidos de se casar durante os 5, 6 ou 8 anos tantos quanto o serviço militar durava. A sua situação era tão deplorável que frequentemente a vida os empurrava para a continuação indefinida nas fileiras. Por isso, em todo esse período, o exército francês, como o nosso, mais do que um exército profissional é um exército de soldados velhos.
Lá, como em Portugal, durante todo este período, há uma clara repulsa e medo da requisição para as fileiras, excepto naquelas camadas que pela sua situação endinheirada estava livre do perigo.
Para a França, 1870 é o momento de tirar lições a respeito da conscrição. Lições amargas que a levam a não adiar por mais tempo o serviço militar obrigatório a que a população francesa resistia. Nesse ano, o imperador Napoleão III, para escamotear problemas sociais internos, desafia a Prússia. Mas esta, que tinha um exército municiado pela torrente contínua do serviço militar obrigatório universal desde 1814, criado por Gerhard von Scharnhorst e Frederico Guilherme III, derrota um exército de cem mil homens comandados pelo próprio Napoleão III, na batalha de Sedan, em Setembro de 1870. Vitorioso, o rei da Prússia, humilha a França proclamando-se imperador no palácio de Versalhes, em 18 de Janeiro de 1871. Em 1872, já em plena III República, é decretado o serviço militar obrigatório para todos os homens.
Mas resistências à universalidade do serviço militar subsistem e com elas, ainda que de forma mais mitigada, o sistema de sorteio e certas isenções.
Só com a lei de 1905 o serviço militar obrigatório, com a sua configuração moderna, respeitando o princípio da sua universalidade e com um sistema coerente de serviço militar efectivo, situação de reserva e reserva territorial é instituído em França.
O processo histórico de implantação do serviço militar obrigatório e a sua ligação à ideia de cidadania, pode, em França, dividir-se em três fases. A primeira vai da elaboração ideológica pelos filósofos, na segunda metade do século XVIII até à Revolução Francesa. A segunda fase, denominada de sistema Jourdan e que corresponde ao sistema de sorteio, às isenções e à incorporação dos infelizes que não têm o dinheiro suficiente para se livrarem, vai de 1798 a 1872 durante a III República, após a derrota face à Prússia imperial. E a terceira fase vai desde essa data até a actualidade. Até ao presidente Chirac.

Portugal: das milícias concelhias de D. Dinis, à conscrição republicana de 1911 e à profissionalização para o século XXI.
Em Portugal, como aliás na Europa continental, o processo de afirmação do serviço militar obrigatório, como nova técnica de recrutamento e como valor de identificação nacional, à parte os filósofos, seguiu um percurso idêntico ao da França, nos seus aspectos mais gerais.
Numa linha de defesa do serviço militar obrigatório à outrance há quem use o argumento de que a sua extinção questionaria a própria nacionalidade com base na presunção de que o serviço militar obrigatório existe desde que há Portugal.
Esta opinião não é sustentada pela realidade. Ela tem na base a assimilação da conscrição às formas compulsivas, indispensáveis, de obrigar à participação na defesa, não os cidadãos, conceito que só surge muitos séculos após a fundação do reino, mas os seus súbditos.
Desde que é entidade política independente, o que é permanente em Portugal, como em todas as entidades colectivas que preservam a sua identidade e sobrevivência, é a defesa do território, do poder organizado, do reino ou da República, ou numa versão moderna e sucinta a defesa da Pátria.
O Condado Portucalense e depois Portugal mais do que outros reinos ou principados da Europa de então, por se encontrar na fronteira de duas civilizações antagónicas, a Cristandade e o Islão, viu-se obrigado a cuidar com a máxima energia e saber da sua defesa.
É esta situação de fronteira que conduz Portugal a certas formas de organização social e do território nomeadamente no domínio da organização da sua defesa, que parcialmente o distinguem da ordem feudal da época.
É assim que, com as fronteiras de Portugal praticamente estabelecidas e necessitando fundamentalmente agora, de as defender, o rei D. Dinis, no início do século XIV, cria a primeira organização regular das milícias concelhias e cria os primeiros regulamentos militares.
No último quartel desse século, o rei D. Fernando, após as nefastas guerras contra Castela e respectivos reveses, procurou melhorar a organização militar do reino com a introdução de reformas à legislação militar do seu bisavô.
"No intuito de alargar a obrigação do serviço militar, essas Ordens de 1373 tratavam de averiguar ao certo as rendas e moradores de cada povoação para lhes impor equitativamente o número de homens, armas e cavalos que deveriam ter e faziam apurar o número de jornaleiros para em caso de aperto servirem com as armas dos cavaleiros vilões já reformados. Assim fazia entrar ao serviço da guerra até a mais ínfima das classes populares, à qual, segundo a legislação da época, não tocava o dever de correr as armas." - diz Carlos Selvagem no seu Portugal Militar(4) para em seguida considerar perfeita esta organização da "nação em armas"!

Menos de um século volvido, ao tempo de Afonso V, num período em que os limites de Portugal se encontram consolidados mas persiste o ambiente convulsionado da guerra, agora principalmente com a potência centrípeta que é Castela, as ordenações afonsinas, sistematizam toda a legislação militar anterior e contemplam a organização de todas as classes e de toda a população para a defesa do reino.
Mas esta excelente forma organizativa do reino para a guerra não contempla o serviço militar obrigatório. Estamos longe ainda do conceito de nação e consciência dela e do conceito de serviço militar obrigatório pessoal e universal.
Com um salto de quase cinco século, deixando para trás "as guerras de mercenários", o primeiro exército permanente, criado com a guerras da Restauração, a escola francesa trazida pelo alemão Schomberg discípulo de Turenne, a escola prussiana do conde Lippe com a restruturação militar do Marquês de Pombal, Beresford e o domínio Inglês, a revolução liberal de 1820, a criação da Guarda Nacional e as reorganizações militares do liberalismo, chegamos à República, em 1910.
Nos últimos anos da monarquia no início deste século, vigorava o sistema de recrutamento de praças que vinha desde Beresford, o sistema de sorteio e que é uma aproximação ao serviço militar obrigatório. No entanto, com as substituições, as remissões e outros desvios à universalidade do serviço militar, as arbitrariedades eram tantas que se criou um verdadeiro fosso entre a nação e as Forças Armadas. A este propósito o general Belchior Vieira, um especialista em história militar, citava num trabalho seu (5), o testemunho do tenente de infantaria Cunha d'Eça e Almeida em "Remissões", (revista Militar nº 3 de 1908) que dizia o seguinte:
"Porque o serviço militar não é de facto pessoal e obrigatório, o Estado concede remissões, ou, digamos as coisas pelos seus nomes, transacciona com o imposto de sangue, expressão sonora que no nosso país só tem significado quando o colectado não dispõe de 150 mil réis."
E põe em evidência o desprestígio a que se chegou com "o serviço militar como uma mercadoria negociável".
O serviço militar obrigatório universal é institucionalizado em Portugal com a República, em 1911, na sequência da reorganização do Exército nesse ano.
No entanto, em Portugal, como noutros países europeus, a universalidade do serviço militar obrigatório raramente é concretizada. Ou se volta a estratagemas que deixam de fora os afortunados ou se adoptam critérios que ajustam a incorporação nas fileiras às necessidades das Forças Armadas.
Em Portugal o alargamento efectivo a todos os jovens do sexo masculino só aconteceu durante a 1ª e 2ª guerras mundiais e durante o período das guerras coloniais.
Da década de 80 para cá, de um contingente recenseado de cerca de 100 mil mancebos o número dos que realmente cumpriam serviço militar foi baixando até aos 50% e nos últimos anos a percentagens muito menores. Acrescem ainda, no presente, distorções graves como a de que só cerca de 15 % dos jovens que tenham instrução igual ou superior ao 12º ano de escolaridade é incorporada.
Apesar dos desvios ao carácter universal da conscrição ela teve um papel importante em Portugal para a criação de uma consciência cívica, para enraizar a consciência do dever de defesa da pátria, para a consolidação do sentimento nacional.
Ir à tropa foi ao longo de 70 anos a oportunidade de o camponês do interior conhecer a cidade, tomar contacto com tecnologias mais avançadas do que a enxada ou a charrua ou vencer o analfabetismo nas escolas regimentais. Foi a oportunidade de o transmontano conhecer o algarvio ou o alentejano, o beirão conhecer o minhoto ou o ribatejano e reconhecerem nas suas diferenças o carácter comum da sua condição de cidadãos, empenhados na defesa da mesma pátria portuguesa.
Não devemos, no entanto, idealizar excessivamente a realidade e atribuir ao serviço militar obrigatório o papel que não teve nem podia ter, o papel de factor principal na formação cívica ou na formação da consciência nacional dos portugueses. Se fôssemos por aí que seria da consciência cívica e apego patriótico das mulheres ou de quase metade dos homens que não prestaram serviço militar?
Ou no plano internacional que pensar do civismo, da consciência nacional ou amor à pátria dos ingleses ou dos norte-americanos que não conheceram, a não ser excepcionalmente, a conscrição?
Gerard Bonnardot, num estudo sobre a conscrição e o exército profissional, no Reino Unido,(6) considera que desde 1679, com o acto institucional do habeas corpus, ao garantir o primado da liberdade individual em matéria de justiça, se tornou juridicamente inaceitável o constrangimento físico para assegurar a defesa do país, fora de circunstâncias excepcionais, como a de perigo de guerra.
A Inglaterra desde a revolução burguesa de 1663, em três séculos de história, adoptou o recurso da conscrição apenas durante trinta anos. Durante a 1ª e 2ª Guerra Mundial e, na sequência desta, até 1963. Os EUA da América, adoptaram Forças Armadas profissionais desde a independência, excepto em curtos períodos - Guerra da Secessão, 1ª e 2ª Guerra Mundial e depois, durante a guerra fria, até ao fim da guerra do Vietname.
A Grã Bretanha, por ser uma ilha e os EUA por serem uma quase-ilha, só necessitaram do serviço militar obrigatório em tempo de guerra. E não deixaram por isso, de constituirem nações e os seus habitantes terem consciência cívica e patriótica.

A conscrição no ordenamento constitucional português.
Numa rápida observação das Constituições portuguesas - e para isso socorro-me do trabalho de Jorge Miranda "A Constituição e o Serviço Militar" (7) - constatamos que no nosso ordenamento constitucional o que é permanente é o dever de defesa da pátria. Na constituição de 1822 diz-se, com o seu colorido romântico, no artigo 19º que " todo o português deve ser justo. Os seus principais deveres são venerar a Religião; amar a pátria; defendê-la pelas armas, quando for chamado pela lei; obedecer à Constituição e às leis; respeitar as Autoridades públicas; e contribuir para as despesas do Estado."
Na Carta Constitucional de 1826 o artigo 113º diz mais prosaicamente que "Todos os portugueses são obrigados a pegar em armas para sustentar a independência e integridade do reino e para defendê-lo dos seus inimigos externos e internos."
O dever de prestar um serviço militar só aparece nas constituições republicanas. Na de 1911, na de 1933 e na de 1976, até à revisão do ano passado. O carácter distintivo tem a ver com a mudança de regime, visa a igualdade dos cidadãos, e tem a ver com as necessidades de carácter militar.
Verificamos que desde que somos uma entidade política independente, com identidade própria, temos estabelecido em permanência, no nosso ordenamento legal o dever de defesa da pátriaou o seu equivalente em cada momento histórico.
Na Constituição de 1976 após a revisão de 1997, encontramos consagrado, como desde 1822, o dever de defesa da pátria. O artigo 276º no ponto 1 diz que
"A defesa da Pátria é direito e dever fundamental de todos os portugueses."
O dever de prestar serviço militar, já desconstitucionalizado é referido no ponto 2 deste artigo nos termos seguintes:
"O serviço militar é regulado por lei, que fixa as formas, a natureza voluntária ou obrigatória, a duração e o conteúdo da respectiva prestação."

Conclusão
Podemos concluir que o serviço militar é um meio e não um fim em si. O fim que se pretende alcançar com ele é a Defesa adequada. Esta, por sua vez, em função do momento histórico exige um serviço militar consonante.
A mudança de natureza do serviço militar que hoje estudamos é adequada às novas missões das Forças Armadas, ao contexto político e estratégico, ao sistema de alianças e às novas concepções do emprego de forças, conjuntas e combinadas.
E o inegável e importante papel que o serviço militar obrigatório teve neste século como factor de coesão nacional e formação cívica perdeu importância e pode ser relativizado no mundo da comunicação que é já o Portugal de hoje, no fim do século XX.

(1) - A Guerra na História da Europa de Michael Howard. Europa-América, Agosto de 1997.
(2) - Ibiden. Pág.114.
(3) - M Raoul Girardet. Exposição ao Senado Francês, em 1996, no âmbito da preparação de legislação que consagrou a profissionalização das forças armadas francesas.
(4) - Portugal Militar de Carlos Selvagem, Lisboa, Imprensa Nacional, 1931 - pág.141.
(5) - Visão Prospectiva do Serviço Militar em Portugal. IAEM 1996.
(6) - "De la conscription à l'armée de métier: le cas britannique" Défense Nationale, Maio de 1992.

(7) -Visão Prospectiva do Serviço Militar em Portugal. IAEM 1996. 1

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